O lixo do pai da Reforma
Der Spiegel
Matthias Schulz
Os arqueólogos revelaram os achados do lixo da casa de Martinho Lutero, que
inclui canecas de cerveja, bolinhas de gude e um arco e flecha de brinquedo. A
descoberta será exibida numa exposição que verte uma nova luz sobre a vida
privada do reformador religioso.
O Irmão Martinho, um homem corpulento, estava sentado no vaso sanitário do
Monastério de Wittenberg, usando o hábito preto da Ordem de Santo Agostinho,
quando foi assaltado pelo conceito fundamental do corpo das idéias reformistas.
O próprio Martinho Lutero observou, em dois discursos (nº 1681 e 3232b), que o
Protestantismo nasceu no esgoto: "O spiritus sanctus revelou sua criação a mim
nesta cloaca."
Mesmo assim, alguns historiadores atenuaram a confissão do próprio Lutero,
argumentando que apesar de a palavra "cloaca" poder ser interpretada como
"banheiro", talvez fosse um termo mais geral para dizer "este mundo".
Mas a verdade é de fato de mau gosto, assim como o mestre havia contado.
Escavações no Monastério de Wittenberg descobriram não apenas os restos do
antigo estúdio de Lutero, mas também "um pequeno buraco de latrina com uma
tampa" no porão, conforme relata o arqueólogo Mirko Gutjahr.
Esta última descoberta é resultado de uma escavação arqueológica maior que
começou em 2003 e terminou há algumas semanas com a análise final do sítio.
Historiadores da arquitetura, especialistas em cerâmica e zoólogos desvendaram o
lixo da cozinha do homem cujas teorias mudaram o mundo, e que se referia a si
mesmo com orgulho como o "doutor acima de todos os doutores de todo o papado."
Lutero, herói nacional alemão, foi tema de dezenas de biografias. Sua tradução
da Bíblia para o alemão foi tão influente quanto suas blasfêmias são memoráveis.
Agora os arqueólogos descobriram novas informações surpreendentes sobre o
reformador religioso em três diferentes sítios de escavação:
O chão da casa em que Lutero nasceu, na cidade de Eisleben;
A casa de seus pais na cidade de Mansfeld;
A propriedade em Wittenberg, onde o ex-monge viveu com sua mulher e
seus seis filhos.
As escavações revelaram brinquedos e restos de comida, pratos quebrados e grãos
(datados do ano 1500, pelo método C14). Os arqueólogos também encontraram a
aliança de casamento de sua mulher e uma poupança de 250 moedas de prata.
O Museu de Pré-História do Estado Alemão vai inaugurar a exposição dos pertences
pessoais de Lutero nesta sexta-feira, para coincidir com o Dia da Reforma. O
catálogo descreve o conteúdo da exibição como "sensacional", dizendo que ele nos
permite reexaminar "capítulos inteiros da vida humana".
Toda essa bisbilhotagem no lixo do fundador da igreja Protestante não foi
encarada com entusiasmo pelas congregações protestantes dentro da Alemanha. Para elas, a idéia de que a família de Lutero jogava gatos mortos no lixo da casa é
tão irrelevante, do ponto de vista religioso, quanto a suspeita de que Lutero,
quando era monge, tenha pregado suas teses na parede da igreja do castelo com
tachas e não com pregos.
Mas o lixo da casa de Lutero não deve ser subestimado. Parte dele, analisado com
o uso de métodos de criminologia, está relacionado aos trabalhos intelectuais do
reformista, e revela até mesmo que ele nem sempre foi totalmente honesto.
Por exemplo, o estudioso mentiu sobre as circunstâncias sociais de seus pais.
Ele dizia que era filho de um "minerador pobre" que se matava de trabalhar nas
minas com sua picareta, e que "minha mãe carregava toda a madeira nas costas até
em casa".
Mas isso está longe da verdade. O pai de Lutero já era dono de um moinho de cobre quando jovem, enquanto sua mãe vinha de uma família burguesa em Eisenach e tinha boas conexões com a administração real das minas.
Em 1484, quando Martinho Lutero ainda era criança, a família se mudou para
Mansfeld, onde o pai logo se tornou um capataz bem sucedido. Ele operava três
fundições de cobre, era dono de 80 hectares (198 acres) de terra e emprestava
dinheiro a juros.
O tamanho e grandiosidade de sua casa, conforme revelou a escavação, estavam de
acordo com seu status econômico. "A frente da casa, que dava para a rua, tinha
25 metros de comprimento", diz o arqueólogo Björn Schlenker. A escavação revelou
grandes cofres no porão e um quintal cercado por grandes construções.
Foi nesta fazenda que o jovem Martinho e seus irmãos brincaram, cercados de
gansos e galinhas. Os fragmentos do sítio revelaram que eles brincavam com arco
e flecha, bolinhas de gude de barro e pinos de boliche feitos de ossos de boi -
brinquedos que nem toda família era capaz de comprar na época.
Os restos do lixo da cozinha descobertos na propriedade revelam que a família
comia ganso assado com freqüência e também a carne macia de porcos jovens.
Durante a Quaresma, a família Lutero comia peixes de água salgada caros, como o
arenque, bacalhau e linguado.
A dieta incluía até mesmo figos e uvas, assim como perdizes e aves canoras,
principalmente tordos. A família caçava com iscas de barro.
Os pássaros eram cozidos em panelas acinzentadas, de três pernas, na cozinha
espaçosa. O fogão era aquecido com brasas quentes do cobre da fundição,
esfriadas a 1.000 graus Celsius e levadas para a casa em carroças de madeira.
O teólogo mais tarde lembrou-se que sua mãe tinha batido nele severamente por
ter roubado uma noz. Na escola Latina local, o traquina chegou a apanhar 15
vezes com uma vareta em apenas uma manhã.
É um fato conhecido que os pais de Lutero acreditavam em bruxas e no diabo, mas
não surgiu nenhum detalhe sobre isso nas escavações. Os restos de um chifre de
peregrino, que os peregrinos compravam na cidade de Aachen e usavam para fazer
barulho, foram encontrados nos escombros. O pai tinha aparentemente viajado para
Aachen, uma versão alemã de Lourdes, para maravilhar-se com as roupas usadas por Jesus.
O jovem Lutero ainda não achava as relíquias repulsivas quando foi estudar
direito em Erfurt, uma cidade na Alemanha oriental. Mas de repente interrompeu
seus estudos universitários e fugiu para um monastério. Por quê?
O reformista explicou mais tarde que sua decisão havia sido impulsionada depois
de ter sido pego por uma forte tempestade em 2 de julho de 1505. Depois da queda
de um raio, ele fez o voto espontâneo de tornar-se monge.
Historiadores modernos embelezam a história com dramaticidade. "O raio caiu tão
perto de Lutero que ele foi lançado alguns metros por causa da pressão",
escreveu o teólogo Hanns Lilje. Outros conjecturam que Lutero tenha sido tomado
de um "medo mortal".
Mas a história de um sinal dos céus chegando a Lutero na forma de um raio é
bastante exagerada. Na verdade, Lutero, que tinha 21 anos na época, estava
fugindo de um casamento forçado iminente.
"Registros de arquivos recentemente descobertos mostram que o pai dele já havia
casado três de suas filhas e um filho com os herdeiros de outros capatazes
ricos", explica o especialista Schlenker.
Aparentemente era a vez de Martinho.
Em vez de se submeter à vontade do pai, o jovem foi para o mosteiro dos eremitas
agostinianos próximo a Erfurt. Os 50 monges que lá viviam usavam hábitos pretos
e raspavam a cabeça de forma circular. Eles acordavam às 2h da manhã para as
primeiras orações do dia.
O novo morador do mosteiro era entusiasmado e estava disposto até mesmo a se
auto-flagelar. Ele ia constantemente ao confessionário onde, de acordo com um
dos monges, confessava até mesmo suas ofensas mais irrelevantes.
O motivo era que o incansável demônio da auto-análise estava furioso dentro do
Irmão Martinho. Ele estava constantemente examinando seu interior. Mas quanto
mais olhava para dentro, mais percebia que a luxúria e os desejos escondidos
retribuíam-lhe o olhar.
A agonia do jovem noviço começou a crescer, principalmente porque Lutero, ainda
completamente imerso na Idade Média, via Cristo mais como um vingador que logo
desceria dos céus no Dia do Juízo para lançar todos os pecadores no fogo eterno
do inferno.
As coisas não melhoraram quando Lutero se mudou para Wittenberg.
Enquanto lia um verso bíblico sobre os possuídos, ele caiu no chão,
gritando: "Isso não sou eu!".
Foi esse olhar quase psicanalítico para o próprio umbigo que levou o monge a
perder sua antiga crença na certeza da fé. Seus pensamentos hereges logo se
expandiram para incluir as cartas de indulgência que os cristãos usavam para
comprar a redenção de seus pecados. Ao fazer isso, Lutero estava atacando o
sangue vital do Vaticano. A Igreja ganhava milhões com as cartas.
Seu rompimento final com a Igreja veio durante a "experiência da torre" em 1516.
Lutero estava convencido de que o homem poderia receber a redenção apenas
através da "graça" de Deus, e não por meio de pagamentos e bons atos. De acordo
com o seu ponto de vista, o homem era um servo indigno, sempre tentado pelo mal.
A crença que nasceu repentinamente no monge de Wittenberg enquanto ele estava
sentado na privada foi a de que Jesus havia trazido a salvação para os homens
apesar dos pecados destes.
As 95 teses resultantes rapidamente incendiaram a Europa do início do século 16.
O imperador ameaçou condenar o insurgente à morte, mas Lutero escondeu-se no
Castelo de Wartburg, onde continuou a escrever.
Ele declarou inválidos todos exceto dois dos sete sacramentos (o batismo e a
eucaristia), e criticou o culto às relíquias como sendo uma "coisa morta".
O escândalo começou a atrair cada vez mais pessoas, quebrando a unidade da
cristandade.
O Mosteiro de Wittenberg fechou suas portas em 1522. O prédio foi dado a Lutero
para uso próprio. Ele se estabeleceu ali depois de casar-se com a ex-freira
católica Catherine von Bora, a quem ele se referia de forma excêntrica como
"Senhor Käthe".
Ele não se interessava mais pelo celibato, que argumentava ser contra a
natureza. A Cúria, argumentava, poderia "com a mesma facilidade ter proibido o
ato de defecar".
Os arqueólogos realizaram um trabalho extensivo na antiga abadia em Wittenberg.
Eles tiveram sucesso no quintal, onde encontraram um buraco de dejetos
preenchido com o lixo da família.
A descoberta revela que o doutor trabalhava num quarto aquecido, com vistas para
o Rio Elba. Ele passava as noites escrevendo à luz de lampiões alimentados por
gordura animal.
A escavação encontrou capas de livros de pergaminho, várias "facas de pena" para
afiar as penas de ganso, além de quatro conjuntos de apetrechos para escrita com
areia, tinta e "canetas" antigas.
O pensador era tremendamente prolífico, escrevendo uma média de 1.800 páginas
por ano.
Seu tom tornou-se cada vez mais brusco com o passar dos anos. Ele chamou os
turcos de "demônios", os judeus de "mentirosos" e os padres gays de "irmãos de
jardim que fazem aquilo uns com os outros". Roma, escreveu, estava cercada de
"porcos-teólogos".
Depois de escrever palavras tão afiadas, o eloqüente reformista comia em tigelas
de cerâmica e bebia de jarras turcas magníficas. Os arqueólogos encontraram
azulejos de forno decorados com motivos do Velho Testamento, além de mais de
1.600 cacos de copos que Lutero, um glutão voraz, usava para matar sua sede
considerável de cerveja.
Lutero precisava anestesiar suas emoções. Os ataques da reforma contra o cerne
apostólico pagaram o preço da depressão. Ele era constantemente tentado pela
tristeza.
Em momentos de remorso, Lutero sofria com a certeza de que o demônio estava
tentando convencê-lo a revogar suas idéias. Sua resposta imediata era jogar
tinteiros no demônio ou recorrer ao poder de suas
entranhas: "Mas eu resisti ao demônio, e freqüentemente mando ele embora com um
peido".
Devido a seus inúmeros conflitos com o papa, não é nenhuma surpresa que o
estresse tenha devastado a saúde de Lutero. Ele sofria de reumatismo e pedras no
rim. Estava tão fraco que era levado para seus discursos de carroça. Ele também
sofria de angina pectoris, o que o tornava ansioso. Quando veio a gota, escrever
tornou-se cada vez mais difícil.
Além disso, havia a obesidade. A princípio, o doutor pesava 100 quilos, depois
120, e finalmente, cerca de 150 quilos (a estimativa é baseada num desenho de
nanquim retratando Lutero logo após sua morte).
Os arqueólogos também encontraram dezenas de pequenos frascos, que Lutero usava
para guardar os vários ungüentos e medicamentos que comprava para si.
Ele foi se deteriorando gradualmente. Lutero, o lutador do Senhor, o homem que,
eternamente convencido da incompletude de todas as atividades humanas, disse
humildemente em seu leito de morte: "Somos apenas mendigos".